domingo, 16 de setembro de 2012

Doces Rodopios

Ela era uma menina que gostava da vida. Vinte e poucos anos, morava na casinha humilde porém cheia de amor com a mãe. Tatá era aquele tipo de menina doce, que quando sai de casa para ir à padaria, consegue cumprimentar quase toda a cidade no caminho. "Bom dia, Tatá", era o que ela ouvia por onde passava. "Bom dia, seu José" era o que ela respondia, tão educada como sua mãe gostaria que fosse.

Tatá saía de casa com seu vestido florido, sua sandália rasteira. Saltitando pelas ruas de paralelepídedo do bairro do Pantanal sul-mato-grossense. O calor do fim da tarde em seus ombros, mas ela amava aquilo. A calma da cidade. O mormaço típico. Tatá era uma menina que saltitava e rodopiava, feliz com a vida.

Naquela tarde, como em todas as outras, Tatá tomou rapidamente seu café e saiu apressada e com os cabelos esvoaçantes levando uma pequena sacola pela rua até o rio. Ela cresceu na beira daquele rio. Tomando banho enquanto era criança, brincando com os amigos. O rio que era a sua casa, porque ela sempre morou ali naquele lugar. E não há melhor lugar que a nossa casa.

Tatá correu até o rio, sentou em seu lugarzinho favorito e tirou o que tinha de dentro da sacola. Ali, de longe, quem passasse veria algo como um lanche. E era sim, um lanche. Mas não pra ela.

De dentro do pacote saiu um pedaço de bife, de um tamanho razoável, que ela mesmo tinha comprado para a mãe no açougue pouco antes do almoço. Enquanto a mãe não via, surrupiou um dos bifes e enfiou na sacolinha. Um hábito que já há algum tempo fazia. A mãe fingia não ver e se questionava o motivo pelo qual a filha geralmente separava um bife cru do montante total para a refeição. Mães sempre sabem das coisas, mas ela imaginava que Tatá alimentava algum cachorrinho pela rua. Que engano.

Tatá era sim aquela menina que amava animais. Da mesma forma que cumprimentava as pessoas por onde passava, sabia os nomes de todos os cachorros da vizinhança. E os gatos. E assoviava como os passarinhos. E saía para passear com as galinhas. Até um camundongo, certa vez, fez amizade com Tatá. Porque ela teve medo sim, mas era um animalzinho tão pequeno e indefeso e peludinho que ali, mesmo de longe, ela se afeiçoou a ele.

Essa tarde Tatá visitava seu amigo preferido. Aquele que um dia, enquanto Tatá assistia o pôr do sol, viu se aprochegar meio que em sua direção. Quando o viu, Tatá quase gritou de susto. Mas a criaturinha, indefesa, somente olhou pra ela e abaixou a cabeça. Como um gato ou cachorro à espera de um cafuné. Tatá, ainda assim temerosa pelo animalzinho, não se movimentou. Mas ele, como pedindo a atenção dela e quase deixando de lado a física e a sua espécie, virou o corpo mostrando a barriga. Ele queria carinho. E era um jacaré.

Jacaré, lagarto, iguana, lagartixa. Tatá não sabia muito bem de que se tratava aquele animal feio, mas que exigia tanto da sua atenção. Mas ele não era tão grande quanto um jacaré. Talvez fosse um filhote. Talvez fosse um jacaré anão. Porque em meio às suas feias feições, ele até que era engraçadinho - pouco mais de trinta centímetros e bem mais gordinho do que deveria ser. E ficaram os dois ali, cada um de seu lado, assistindo o pôr do sol. Fato esse que se repetiu depois por mais alguns dias da semana. E Tatá se afeiçoou a ele. Ir até a beira do rio no fim da tarde agora já não era mais só para ver o pôr do sol. Era para visitar o Janjão. Janjão tornou-se o amigo confidente, pois Tatá passava as tardes conversando com ele. Tinha medo de segurá-lo, mas isso não os impedia de ter um relacionamento amigável saudável. Janjão fazia exatamente o mesmo movimento todos os dias: saía da água, avistava Tatá sentada na beira do rio assistindo o pôr do sol, se aconchegava em seu redor e fazia companhia. E assim criou-se uma afeição mútua. E quem foi que disse que os répteis têm o sangue frio?

Naquela tarde, Janjão não veio assistir o pôr do sol e comer o bife que Tatá deixou à sua espera. "Deve ter perdido a hora", pensou ela preocupada. Esperou até quase a lua aparecer no céu. Mas não podia esperar mais. Ela quase ouvia no fim da rua a sua mãe chamando para o jantar.D eixou o bife no lugar de sempre, meio que escondido para que outros animais não pegassem. "Janjão pode ter fome durante a noite". E correu para casa.

No dia seguinte, o bife ainda estava lá. E no outro, e no outro. Passou quase uma semana sem que Janjão chegasse para fazer companhia. Para comer. Para conversarem. E Tatá pensou no pior. Pensou que ele deveria estar doente. Pensou que ele poderia ter se perdido. Pensou que, ai meu Deus, ele poderia ter morrido. E então o desespero veio à tona.

Tatá passou mais vários dias indo sozinha à beira do rio no fim da tarde. Um mês, dois meses, três meses. Chateada, chegava às vezes até a chorar. Demorou, mas passou. Tatá era uma menina cheia de esperanças e de bons pensamentos, o que a ajudou a pensar que onde quer que Janjão estivesse, estaria melhor. Mesmo assim, Tatá deixou de rodopiar pela rua para assistir o pôr do sol na beira do rio no fim das tardes.

Um dia enquanto assistia no sofá à novela com a mãe, Tatá ouviu um burburinho das crianças na rua. Abriu a porta e viu o pessoalzinho afobado correndo, mas a mãe de Tatá não a deixou sair de casa. "Isso não é hora de moça de família ficar na rua, Taryne" foi parte da bronca ouvida. Tatá, muito obediente, porém com a curiosidade maior, rolava na cama em seu quarto contando as horas para o amanhecer. Com os pensamentos tão entretidos em sua própria cabecinha, Tatá quase nem percebeu que o burburinho da rua tinha se dissipado. E agora, lá fora, só se ouvia os grilos da madrugada.

Tatá saiu pela janela. Pé ante pé, descalça pela rua, o tecido da camisola fina esvoaçante. Tatá correu no sentido do rio. Cheia de emoção e ansiedade, marejou os olhos quando chegou na margem.

Janjão estava lá, à sua espera. Pareceu sorrir no momento em que viu Tatá. Ela, feliz da vida, pela primeira vez passou as mãos no dorso dele e viu que ele fechava os olhos de satisfação. Em meio ao carinho há tanto esperado, Janjão olhou para o lado, como quem mostrava alguma coisa. Tatá também olhou. E no bife que Tatá havia deixado lá já há algumas semanas meio escondido entre as folhas, um filhotinho.


sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Camila [14/30]

E caiu inconsciente por causa de um sapato na cabeça, Helena apareceu no portal com um pé descalço e Alice veio logo em seu encalço, as duas tinham um sorriso maroto no rosto e um riso que eu sabia que era mais de adrenalina e desespero do que de alegria. Naquele momento eu sabia, eu tinha as melhores amigas do mundo.




Foi o tempo de Helena correr em minha direção e me abraçar e Alice, desesperada para resolver logo a situação para podermos sair logo daquele lugar horrível, chegou arrancando todos os fios de Alex. De uma vez, sem nem pensar no que poderia acontecer. Eu, em um misto de "isso mesmo, vamos correr daqui" e "mas Alex tinha dito que primeiro é preciso desconectar os fios azuis e só então os vermelhos" me desesperei. 


- Alice, meu Deus, não deve ser assim que desliga, pare com isso, você pode matar o Alex!

E então foi nessa hora. Foi nessa hora que, de repente, tudo ficou escuro. E eu, demorando pra entender o que havia acontecido, o rosto cheio de lágrimas e o grito estridente de Helena do meu lado, finalmente percebi: eu não havia ficado cega. Estávamos no escuro simplesmente porque toda a luz do prédio que não tinha nenhuma janela se apagou. 

Segurando nas mãos de Helena e tentando acalmá-la, eu tentava lembrar. Em qual andar estávamos dentro daquele prédio horroroso? Quinto? Depois de tantos corredores e tantas escadas que passei morta de ansiedade pelo que ia encontrar quando chegasse no lugar em que dr. Oliver estava me levando, acabei me perdendo. Como se eu, que me perco até em shopping, precisasse de muita coisa pra me perder em algum lugar.

De repente senti alguém encostando a mão no meu braço. Depois do grito ensurdecedor que eu dei, reparei que era Alice. Quase cheguei a esquecer da presença dela enquanto pensava em nossa situação.

- Gente, eu lembro que estamos no terceiro andar. Tudo o que temos que fazer é atravessar todo o corredor, o que não é muito difícil, porque é uma reta só. No fim dele, ficam as escadas. Descendo três lances chegamos na porta da rua. A questão é: como carregaremos o Alex?

Pronto. Alice, sempre ela. a personificação da pessoa esperta. 

- O skate! O skate! - Helena gritou. 

- Helena, que susto! Que skate, minha filha? Tá alucinando? - eu também me achei no direito de extravasar meu nervosismo no momento.

- Di, nós viemos de skate! O irmão da Alice nos emprestou dois, para virmos pra cá, quando ele nos ouviu discutindo sobre como poderíamos chegar aqui. Você sabe que horas são? Duas horas da manhã! Não tem mais ônibus nessa cidade e eu sempre digo que isso aqui é tão interior que até os taxistas dormem! Deixamos os skates lá na recepção! Tudo o que temos que fazer é irmos lá buscar, voltarmos aqui, colocarmos o Alex em cima deles e então conseguimos sair rapidinho. E é nossa única opção, porque por mais fraco que ele esteja nós não vamos conseguir carregá-lo nas costas!

Maravilha. Estava tudo muito bom, tudo muito bem. Um corredor imenso e cheio de portas no caminho. Duas horas da manhã. Escuridão quase que completa, porque nossos olhos se acostumaram um pouco a ela e agora pelo menos a gente conseguia enxergar mais ou menos uns três palmos diante do nariz. Dr. Oliver esticado no chão e eu tentando calcular mais ou menos quanto tempo ele ficaria desacordado. Foi só uma sapatada. E eu, que sempre achei exageradas aquelas meia-patas imensas que Helena insistia em usar até pra comprar pão na esquina, agora agradeci. Com certeza a sapatada foi mais eficaz de meia pata do que teria sido se ela usasse sapatilhas como eu.

- Mas Helena, como vamos levar Alex por quatro lances de escadas abaixo em cima de skates? 

- Parece que eu vi um elevador, Di! - Alice finalmente se manifestou - Só não lembro se foi do lado esquerdo ou direito da escada, mas tinha um elevador!

- Ótimo, facilitou um pouco a vida agora. Então vamos buscar os skates e no caminho a gente já vê se o elevador está funcionando. 

Peguei no braço da Alice e esperei enquanto Helena resgatava seu outro pé de sapato jogado e colocava no pé de volta, mas não sem antes dar com vontade mais uma bela sapatada na cabeça do Dr. Oliver já jogado anteriormente no chão.

- Pra garantir que o tiozão não vai acordar - explicou. Segurou meu outro braço e abrimos a porta.


Quando olhei à frente pensei que não me lembrava daquele corredor ser tão comprido. Não me lembrava de ter passado por ali com Dr. Oliver, quando nos dirigíamos à sala em que Alex estava. Devia ser a minha ansiedade, claro. Dei graças por conseguir enxergar uma luz no fim do corredor. Havia uma única luz de emergência em todo aquele andar, localizada bem lá no fim do corredor, perto das escadas. Mesmo com a luz muito fraca conseguíamos ver o elevador, bem ali do lado direito da escada. Eu amo minhas amigas, pensei. Conseguiremos.

Foi logo nos três primeiros passos da corrida que Helena torceu o pé. Ah, meia pata. Eu te odeio. Helena caiu, nós paramos pra ajudar, conseguimos levantá-la. Eu e Alice, uma de cada lado. Helena mal conseguia colocar o pé esquerdo no chão. Arranquei aquele inferno de sapato dos pés dela e a carregamos devagar pelo corredor. Pronto, que beleza. Eu amo Helena, mas Deus me perdoe, nessa hora eu só consegui pensar que era uma a menos pra carregar o Alex pra fora daquele lugar horroroso. Helena era uma das minhas melhores amigas, irmã mesmo. Mas o problema dela era só um pé torcido. E o problema de Alex era a própria vida.

Mais alguns passos doloridos pelo corredor imenso e começamos a ouvir um barulho vindo de dentro das portas. O vento. O vento que uiva quando bate em prédios altos. O vento que entra por frestas de janelas. Ah, é só o vento. Mas... por onde vinha vento, se aquele prédio não tinha nenhuma janela?

E então eu vi uma menina. Correndo, de uma porta a outra do corredor. Uma imagem quase apagada, como uma sombra. Uma sombra branca. E ela saía de uma porta e entrava em outra. Várias vezes. Portas diferentes. Cabelos lisos e castanhos, uma camisola branca e comprida até os pés. No barulho do vento, a imagem da menina corria por entre as portas e vinha do fim do corredor cada vez mais pra perto de nós, que paramos no caminho porque o arrepio de medo não deixava a gente se mover.

Uma sombra branca de menina. Um fantasma. 

E então ela parou na nossa frente e sem que ela abrisse a boca ou expressasse qualquer movimento facial, ouviu-se naquele corredor:

- O meu nome é Camila. E vocês não vão conseguir sair daqui.

E foi nessa hora que Alice desmaiou.









Esta é a décima quarta parte de um meme cuja proposta foi fazer um conto a 30 mãos para comemorarmos 1 ano do grupo de blogueiras mais florido desse mundo: a Máfia!
Pra quem perdeu o que já passou e quiser acompanhar separei os links aqui embaixo, e pra quem ficou ansioso pra saber a continuação é só esperar. Amanhã chega a continuação dessa eletrizante aventura com a galerinha da pesada aprontando altas curtições no blog da Mayra!




1/30 - É só uma picadinha - por Rafaella
2/30 - Como tudo começou - por Marie
3/30 - Do medo da perda - por Marcela
4/30 - Esperando o telefone tocar - por Ana Lu
5/30 - Entre o pensamento e a realidade - por Rhaíssa
6/30 - Não há lugar como a nossa casa - por Rafaela
7/30 - por Gabriela Couth
8/30 - Centro de Pesquisas Humanas em Zumbot - por Nathy
9/30 - A verdadeira face de Alex - por Tailany
10/30 - Vamos com você, nós somos invencíveis pode crer! - por Lilica
11/30 - Contra o tempo - por Bruna
12/30 - Intimação - por Gabriela Irala
13/30 - Take my hand, we'll make it. I swear - por Alessandra